segunda-feira, 9 de julho de 2012

Urbanização e especulação imobiliária: reflexões sobre a cidade que temos e a cidade que queremos.

Publicado originalmente em fevereiro de 2012

Há alguns dias caminhava pela cidade de Nossa Senhora Glória, considerada como uma das cidades que mais cresce em Sergipe, observando a movimentação dos transeuntes em um típico Sábado de Feira Livre. Saia do bairro Divinéia, que representa a acrópole gloriense, em direção às áreas centrais da cidade, quando me deparei com uma paisagem que dava sinais de modificações recentes. A região conhecida como a “baixa”, nas vizinhanças do centro da cidade e de um bairro popular conhecido como Alto da Glória, estava completamente desnudada, ou como preferem alguns, “limpa”. A “baixa” é uma área que tem o relevo acidentado, com algumas encostas ocupadas por residências, cuja depressão forma uma espécie de caldeirão. Historicamente conservava uma vegetação exuberante, concentrando em sua parte mais baixa um charco sujeito a inundação em épocas de chuva intensa, que se conecta a um manancial de água, componente da bacia hidrográfica do Rio Sergipe.

Observei a cena ao longe. O caldeirão tinha sido esvaziado e mais parecia que um ciclone havia passado por ali. Aguçando um pouco mais a visão foi possível perceber algumas faixas de terras marcadas por tratores sinalizando possíveis eixos de novos arruamentos que nasciam na parte mais alta da encosta e mergulhavam em direção ao fundo do caldeirão. No centro ainda era possível ver o um filete de água que testemunhava a origem do charco permanente. Pensei: novos lotes, afinal “Glória é a cidade que mais cresce em Sergipe”. Quanto valerão? Quem poderá pagar por eles? Algum tipo de obra de Engenharia será realizada antes ou eles serão construídos sobre o charco e sobre as encostas? Tentei divisar o futuro e imaginar como ficaria aquela paisagem daqui a 10 anos. Não consegui. Apenas continuava perplexo diante do “progresso” pretendido e praticado.

Pensando sobre o fenômeno da urbanização, observei um impulso em refletir um pouco sobre o assunto, o que resultou nas linhas que compartilho aqui.

Urbanização, crescimento e desenvolvimento das cidades

Assim como em todos os aglomerados humanos espalhados pelo mundo contemporâneo, desde as megalópoles e metrópoles internacionais como Osaka-Tokio (Japão), NewYork-Filadéfia-Baltimore (Estados Unidos), ou Rio-São Paulo (Brasil) até as cidades de pequeno porte, a urbanização representa um dos fenômenos mais complexos da sociedade moderna. Embora suas raízes no tempo estejam muito afastadas de nós, constituindo-se um fenômeno antigo, presenciamos atualmente um grau de desenvolvimento tecnológico e científico que pouco a pouco vão transformando em realidade as paisagens futuristas dos livros e filmes que tiravam o fôlego da nossa geração de 1980, quando tudo isso não passava de ficção científica.

A cidade se impõe como o símbolo de desenvolvimento e de progresso da civilização, em oposição ao meio rural, considerado no imaginário popular como atrasado e primitivo. Crescem em todas as suas dimensões: na expansão das áreas residenciais, no surgimento de novas áreas comerciais, na ampliação dos distritos industriais, na mudança do grau de uso e ocupação (como por exemplo, áreas residenciais que passam a se tornar comerciais, pela pressão da atividade econômica). Cresce o contingente populacional, a frota de veículos, as redes de infraestrutura para distribuição de água, saneamento básico, energia elétrica, telefonia e acesso à internet, dentre outras.

Todo esse movimento complexo se desdobra diante dos nossos olhos e sustenta um discurso político que estabelece a urbanização como um fenômeno natural, relacionando-se crescimento urbano a uma melhoria direta da qualidade de vida da população, sob a bandeira do progresso econômico e social dos cidadãos.

Entretanto, quase sempre acabamos ficando apenas com um lado da moeda. A urbanização tem muitas dimensões e é importante percebermos que ela não é controlada pelas forças da natureza. As leis que regem a urbanização não são as mesmas que explicam o clima e o relevo, não se constituindo, portanto, um fenômeno natural. Esse processo é conduzido e sustentado por atores humanos, grupos e organizações de poder político e econômico e a própria sociedade. Na ciência geográfica são conhecidos como agentes produtores do espaço urbano e influenciam diretamente o processo de crescimento das cidades, segundo um conjunto de interesses que nem (ou quase) sempre representam um crescimento na qualidade de vida dos cidadãos e na promoção do bem estar social tão propagado no discurso do desenvolvimento.

Aliás, nesse debate, desenvolvimento e crescimento são conceitos tão distorcidos entre si que muitas vezes a sociedade acaba tomando-os como sinônimos, quando o desenvolvimento urbano é algo mais complexo que não implica apenas a expansão pura e simples de novos loteamentos, novos arruamentos, nova iluminação pública, novas praças e quaisquer novas “obras” físicas. O desenvolvimento pleno da cidade deve considerar as dimensões social, econômica, cultural e ambiental, e deve conferir aos cidadãos o que os cientistas sociais denominam de Direito à Cidade, que, de modo bem simplório, está relacionado ao desenvolvimento da consciência cidadã para decidir junto com os representantes governamentais, sobre o destino da cidade. Afinal de contas, para conhecer o outro lado da moeda da urbanização, basta observarmos os índices de violência nas grandes cidades, os problemas ambientais e de saúde pública, o crescimento de zonas ou bolsões de pobreza, que dispõe de pouca ou nenhuma cobertura de serviços básicos, ferindo o que dispõe a própria Constituição Federal sobre os direitos fundamentais do indivíduo.

Os avanços na legislação foram extremamente importantes, principalmente com o Estatuto das Cidades que contém diretrizes para a gestão das políticas públicas para o desenvolvimento urbano. É lá por exemplo que temos referência à necessidade de que os municípios elaborem seus Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano (PDDU). Entretanto, é grande o descompasso entre a teoria e a prática, porque infelizmente ainda impera a cultura da obrigatoriedade e os municípios investem recursos para elaboração de um documento que muitas vezes serve de decoração para a gaveta mais baixa do arquivo público, e não como instrumento de gestão e desenvolvimento local, de justiça e cidadania.

Passada a obrigatoriedade legal, a cidade continua crescendo seguindo a lógica da especulação imobiliária, dos interesses de grupos econômicos, mantendo a população absolutamente alijada do processo, conduzida como massa humana num joguete que beneficia poucos em detrimento da maioria. É desta forma que áreas ambientalmente frágeis são ocupadas sem nenhum tipo de restrição, produzindo catástrofes e traumas sociais anunciados. Quem não recorda dos episódios ocorridos na região serrana do Rio de Janeiro em 2011, que deixou o Brasil inteiro perplexo diante da impotência dos mecanismos humanos no esforço de garantir a segurança da população afetada por aquelas série de deslizamentos e escorregamentos em encostas que nunca tiveram condição alguma de ocupação humana.

Quanto vale um lote urbano em uma área de expansão? E em uma área central? Quanto vale abrir novas vias que conduzem a esses novos loteamentos? Agora precisamos nos perguntar: quanto vale as vidas das populações que habitam áreas ambientalmente e socialmente precárias? ? Quanto vale a degradação dos rios, seja pela destruição de seu curso com o aterramento para criação de lotes e vias de acesso público, seja pelo descarte de volumes de esgotamento sanitário em rios e mananciais de água? Quanto vale a ausência dos cientistas de todas as áreas e da população em geral discutindo o planejamento urbano e pensando o futuro da cidade?

E o caldeirão?

Ontem, passei novamente pela nova área residencial da nossa gloriosa cidade. Alguns lotes já estão demarcados, e em alguns dias, novos alicerces começarão a subir. Não devem subir tanto quanto os preços, é claro. Fico me perguntando quais serão os próximos eventos desse fenômeno “natural(izado)”. Qual será o papel do poder público nesse processo? E o nosso? Qual será? Pensemos.

*Edson Magalhães B. Júnior é Geógrafo, Especialista em Cartografia e Geoinformação

Um comentário:

  1. Uma vez que o poder público está atuando em conluio com o poder econômico, poder este que dita as regras da vida social, qual será a verdadeira serventia/utilidade do poder público?

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